Maíra Manga - Lá
Marca: Maíra MangaModelo:Lá Lançado em: 10/12/2021
DESCRIÇÃO
Convém, antes de tudo, definir onde é “Lá”. Ou, talvez, mesmo o que seja “Lá”
Pois essas duas letrinhas, quando juntas em português normalmente formam um advérbio que indica algum lugar que não é aqui, mas que é próximo ou conhecido o suficiente para que daqui se veja, ou pelo menos se imagine, até que se aponte, feliz por se poder mostrar: “é lá, veja”. Pois esse, vejam, e agora sou eu que tenho a felicidade de apontar, é o primeiro significado deste “Lá”, o álbum de estreia da cantora mineira Maíra Manga, composto, arranjado e produzido para ela por Sérgio Santos: “Lá” é concretamente, literalmente, um Brasil que conhecemos bem, mas que aparentemente não está mais por aqui. É lá. Se aqui é um Brasil feio, triste, lá é o Brasil bonito e potente das canções, das águas, das matas, dos bichos e da gente.
É o Brasil das canções, da “Amazônia-mãe” (“A vida vem dos rios/A natureza toda vem das águas”); de se falar com passarim, assim como Jobim, em “Diz pra mim” (“Nessa tarde se eu vou tê-la/Se o que arde em nossa estrela vai ter fim”), do “Ribeirão de corredeira” (“Se ela se erguer não é visão de jeito algum/Sumindo, é santa, é deusa/É Mãe Oxum”); do Brasil “de antes do branco” dos índios simbolizados em “Raoni”, dos bichos espertos que somem quando percebem “O caçador”, da pássara “Saíra” que é metáfora para cantora que voa quando canta (“Eu sei voar qual saíra/Saíra, assim vou cantar”), das claras manhãs brasileiras de “O dia” (“São finos véus de luz/Descosturando os céus azuis”); das águas que nascem no manancial até o mar de “Margem derradeira”, ou de quando “água de mina jorra” para formar o “Rio Verde”, “o chão e o céu das Gerais”, a Minas Gerais da cantora e do compositor.
“Lá”, portanto, é o Brasil tão magnífico das canções, se formos ver assim literalmente.
Mas “Lá” é também a canção de Sérgio Santos que abre o disco e aí o título ganha outro sentido, desta vez ao mesmo tempo real e metafórico: “Onde tudo é feito pra se sonhar/Quem sabe o nosso amor viva por lá?”, pergunta a canção. Para um pouco depois responder: “Quando eu piscar meus olhos/Pra te imaginar/Então o amor é lá”. “Lá”, então, é o amor: o amor de um compositor e arranjador por uma cantora, da cantora por este compositor; de ambos pela tradição da canção brasileira e por criar novas e atualíssimas canções, e de amor pelo Brasil como terra, como água, como bicho, como gente, mas também como ideia que vai inspirar canções, num ciclo sem fim que conhecemos como música brasileira.
E nesses dois significados, um concreto outro metafóra – ambos apaixonados e inspiradores – é que se constrói este “Lá”, então vamos a ele.
“Lá” é um disco “camerístico”. O que, na tradição da música brasileira, nos remonta, por exemplo, a “Canção do amor demais”, o paradigmático álbum de Elizeth Cardoso com as canções de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, lançado em 1958. Ou seja, um conjunto de canções novas, autorais – aqui, no caso, 12 canções novíssimas de Sérgio Santos, quatro só dele, oito com Paulo César Pinheiro, seu mais constante parceiro – elaboradas o suficiente para serem comparadas a peças eruditas, mas ao mesmo tempo cantadas e tocadas de forma tão natural que não perdem o status de música popular. Vem daquela linhagem de Villa-Lobos que foi desaguar em Jobim, gerar Edu Lobo e Dori Caymmi e chegar aqui, ou melhor, “lá” na obra de Sergio Santos agora em plena maturidade depois de sete discos e pleno de sua música como cantor, violonista, compositor e arranjador. E na linha de cantoras como Elizeth, precisas e expressivas, generosas com as canções, na linha que vai de Elis a Monica Salmaso, até chegar em Maíra Manga.
Outra característica “camerística” de “Lá” é a sua formação instrumental, densa mas pequena, poucos instrumentos – no caso o violão do próprio Sérgio Santos, o piano e o acordeom de Rafael Martini, o clarinete de Luca Raele e o violoncelo e as percussões de Felipe José – que tocam como um conjunto acompanhante, mas com cada instrumento mantendo sua função e seu destaque individual, como se fossem solistas, bem na tradição da música de câmara. Em quatro das canções, uma completa seção de cordas, arranjada por Sergio Santos e gravada pela já célebre orquestra de estúdio de São Petersburgo, na Rússia, adensa ainda mais os arranjos, mas também mantendo sua função, “dialogando” com cada instrumento do conjunto, camerístico pois: cantora, músicos, orquestra, todos solistas tocando juntos, muitos caminhos em harmonia, como a natureza do Brasil que as canções descrevem, nascentes de riachos que vão formar rios a caminho do mar.
Não por acaso, até as participações especiais do disco mantêm essa característica camerística. Em “Margem derradeira”, o conjunto curitibano Vocal Brasileirão aparece ora como um solista a mais, ora incorporando a voz de Maíra Manga ao arranjo vocal escrito por seu maestro Vicente Ribeiro – não fosse o Vocal Brasileirão justamente uma orquestra de vozes solistas. Na mesma faixa, o contrabaixo de Rodolfo Stroeter também se integra ao conjunto, tocando solto, como um solista.
Na única faixa em que o conjunto de câmera não está presente, o samba-canção “Romances”, Maíra Manga faz um duo com o piano de André Mehmari, que por natureza toca dessa forma proposta pelo disco: acompanhando mas solando, numa polirritmia e numa profusão de ideias musicais que fazem, do piano, ele próprio um conjunto “camerístico”.
“Romances”, aliás, uma obra-prima digna da dupla Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro compõe, no meio de “Lá”, um díptico com outra linda canção de amor, “Um outro olhar”, ambas narrando a chegada de um novo amor – tema que está por trás do disco, de todas as canções – como uma pausa entre as canções exuberantes sobre o Brasil.
Como tantos discos da contemporânea canção brasileira, “Lá” foi gravado literalmente com o Brasil que descreve em torno, na Gargolândia, o estúdio mantido pelo também compositor Rafael Altério no interior de São Paulo, dentro de uma fazenda.
Mas tudo isso – 12 novas e lindas canções sobre o Brasil, sobre o amor; orquestra e conjunto de câmera; o estúdio e a gravadora Biscoito Fino, tudo de excelência – está aqui reunido na verdade para o lançamento de uma nova cantora. Mesmo muito jovem, Maíra Manga tem estrada de shows, sólida formação musical e um timbre personalíssimo: “algodão e paina”, “suave e doce”, como define Paulo César Pinheiro no texto de apresentação; “um canto cristalino e transparente de pássaro livre”, como atesta Rosa Passos, matando a charada do canto de Maíra, que “passeia de mãos dadas com as canções”, um canto virtuosístico mas que se coloca inteiramente a serviço das canções.
E aí, na personalidade vocal de Maíra Manga, em sua segurança musical, sua afinação, “Lá” ganha um outro significado, desta vez não mais um advérbio, mas quando “lá” é um substantivo: a nota musical, a nota do diapasão, a que serve de parâmetro para afinar as outras, a continuidade e a renovação da canção brasileira através de uma artista tão jovem.
“Lá” é, portanto: o Brasil exuberante das canções, é onde mora o amor, é o próprio amor, mas também a nota precisa, o acorde mais bonito, a canção brasileira em seu leito, como um rio límpido. Tudo isso contido numa palavra de duas letrinhas e cheia de sentidos e neste álbum excepcional, também nos dois usos da palavra.
Hugo Sukman, julho de 2021
FAIXAS
01. LÁ
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos
Editora: Direto
02. AMAZÔNIA-MÃE
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
03. DIZ PRA MIM
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos
Editora: Direto
04. RIBEIRÃO DE CORREDEIRA
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
05. RAONI
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos
Editora: Direto
06. O CAÇADOR
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Direto / Cordilheiras (Sony)
07. SAÍRA
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos
Editora: Direto
08. O DIA
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
09. ROMANCES
Intérprete: Maíra Manga e André Mehmari (Piano)
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
10. UM OUTRO OLHAR
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
11. MARGEM DERRADEIRA
Intérprete: Maíra Manga, Rodolfo Stroeter e Vocal Brasileiro
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)
12. RIO VERDE
Intérprete: Maíra Manga
Autoria: Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro
Editora: Sony/ATV / Cordilheiras (Sony)